Persuasão e ideologia na retórica de Bento Santiago, o Bentinho

Resenha do livro Revisitando Dom Casmurro: aspectos retóricos em conexão com a Bíblia, por Prof. Dr. Francisco Benedito Leite

MOSCA, Lineide do Lago Salvador; PROENÇA, Paulo Sérgio. Revisitando Dom Casmurro: Aspectos retóricos em conexão com a Bíblia. Curitiba: Appris, 2020, 165 p.

 

Persuasão e ideologia na retórica de Bento Santiago, o Bentinho

Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (2005 [1958]) mencionam a elevada importância histórica que a Retórica tem na formação do advogado e do teólogo e, mesmo na época em que seu prestígio estava em declínio, sua estima continuou intocável no interior dos seminários teológicos e das escolas de Direito. Possivelmente isso se deu por causa de sua importância prática para o exercício das funções tanto do profissional da justiça, quanto do pregador do evangelho.

Ambos oradores, no exercício de suas funções, têm lugar privilegiado para o exercício de seus discursos. Enquanto o advogado ou o promotor de justiça constrói seus argumentos durante o julgamento, permitindo que o réu se pronuncie somente quando a palavra lhe é concedida, o cura d’almas, por sua vez, pronuncia-se monologicamente durante a ministração da homilia, pois a autoridade que lhe é concedida durante a liturgia não admite réplicas.

Além desse aspecto oratório, os discursos do ‘advogado’ e do ‘padre’, por assim dizer, também são responsáveis pela formação do complexo sistema de valores existentes na sociedade e que chamamos de “ideologia”. Mesmo sem que ninguém se enuncie deliberadamente, o aparelho assim nomeado “ideologia” regulamenta o certo e o errado, o belo e o feio, a virtude e o vício etc. de modo que o grupo dominante (masculino, branco, economicamente abastado) se imponha sobre os demais grupos sociais.

Esse quadro permite que compreendamos a proposta de Mosca e Proença em Revisitando Dom Casmurro (2020), pois é com a concepção de que o narrador de Dom Casmurro, Bento Santiago, é um orador monológico, pertencente à elite de sua sociedade machista, patriarcal, branca e abastada; formado em Direito, de tradição católica, com passagem pelo seminário, que os autores abordam a leitura do romance de Machado de Assis.

 Isto é, não concedem a palavra final ao orador, antes submetem sua narrativa à rigorosa análise argumentativa, fundamentada principalmente em Perelman e Olbrechts-Tyteca.

Ao retomar as argumentações jurídicas e a cosmovisão religiosa utilizadas por Bento Santiago para condenar Capitu, os autores, Mosca e Proença, apontam que estas provaram ser tão persuasivas que, no passado, mesmo os críticos de maior prestígio confiaram nelas e concordaram com o julgamento falacioso da personagem feminina – talvez por que os leitores do passado não distinguiram claramente o autor, Machado de Assis, do narrador, Bento Santiago – e agiram em solidariedade ideológica com o narrador do romance disseminando valores machistas e patriarcais, os quais o gênio de Machado de Assis propositadamente colocou como cilada para seus leitores, desprecavidos da argúcia para investigação de sua retórica.

Todo aquele que pretende ler Revisitando Dom Casmurro deve se preparar para um processo de desconstrução do romance, que passa por análises argumentativas, estudo do gênero discursivo judiciário, conhecimento do texto bíblico que funciona como intertexto, estudo do contexto histórico-social da obra e revisão da crítica sobre o veredicto dado a Capitu. Acompanhar os autores na realização desse procedimento permitir-nos-á perscrutar o brilhantismo de Machado de Assis, que critica a sociedade de sua época sem lançar mão do evidente, ao invés disso, dissimula por meio do discurso monológico de seu Dom Casmurro. Para isso utiliza da técnica da ironia, definida por Aristóteles como “dizer o contrário do que se dá a entender” (Ad Alexandre XXI, 1434 17-19 [2011]), a qual, podemos concordar com Muecke (1995), é o elemento constitutivo do romance.

 

 

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Retórica a Alexandre. Col. Clássicos Edipro. São Paulo: Edipro, 2011.

MUECKE, D. C. Ironia e o Irônico. Col. Debates; 250. São Paulo Perspectiva, 1995.

PERELMAN, Ch. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: A Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005 [1958].

 

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