Sobre Tese de Josely Teixeira Carlos publicado pela AUN

Polêmico em suas canções, Belchior dialoga com ícones da música brasileira

Pesquisadora estudou obra do cantor e percorreu embates e relações provocativas de intertextualidade presentes nela
Por Quéfren de Moura - quefren@usp.br 
Edição Ano: 47 - Número: 102 - Publicada em: 16/12/2014
 
Belchior é tema de tese que estuda polêmica nas relações entre canções brasileiras

A obra do cantor Belchior é tema de tese de doutorado defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa da FFLCH por Josely Teixeira Carlos, Fosse um Chico, um Gil, um Caetano: uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior. Orientada por Lineide Salvador Mosca, professora da USP, e Dominique Maingueneau, da Universidade de Paris V-Sorbonne, a pesquisadora apresenta, de forma aprofundada, o embate ideológico-musical que se construiu entre Belchior e os compositores de sua geração, bem como com aqueles que muitas vezes são seus precursores, todos artistas da música brasileira considerados grandes ícones desde a década de 1960 — particularmente Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil.

Segundo Josely, para marcar um diálogo com os cancionistas da música brasileira, Belchior “investe em procedimentos discursivos e argumentativos, os quais por sua vez abrangem os elementos linguísticos”. A construção desse diálogo é permeada por embates no estabelecimento das relações entre o texto de suas canções e o texto das canções de outros compositores, os quais não apenas são mencionados em sua obra, mas citados por meio de “intervenções polêmicas”. A canção “Apenas um rapaz latino-americano”, extremamente popular e emblemática dentro da produção do artista, é um exemplo paradigmático interessante. Sua letra começa com “Tudo é divino! Tudo é maravilhoso!”, menção direta da canção “Divino maravilhoso”, de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Paradoxalmente, no fim, a letra diz: “Mas sei que nada é divino / Nada / Nada é maravilhoso, nada / Nada é secreto, nada / Nada é misterioso / Não (...)”. Evidencia-se um câmbio de posicionamento, dessa vez contrariando a primeira ideia. Assim, há uma perspectiva que tenciona a relação intertextual, intensificada por meio da qualificação do autor da música citada como “antigo”, como se vê no trecho: “Mas trago de cabeça uma canção do rádio / Em que o antigocompositor baiano me dizia: / – ‘Tudo é divino! Tudo é maravilhoso!’.”

No âmbito das relações construídas por Belchior, outro ponto interessante é a crítica do cantor ao “investimento em línguas estrangeiras” por parte de cancionistas brasileiros. Trata-se, em especial, do uso do inglês, já que Belchior refuta a adesão pelos baianos à cultura de língua inglesa, o que pode ser atestado na canção “Coração selvagem”. Ali há: “meu bem / que outros cantores chamam baby! / que outros cantores chamam baby! / que outros cantores chamam baby! / meu bem...”. Evidencia-se uma relação intertextual com tom de crítica e polêmica com a canção “Baby”, de Caetano Veloso, cantada e imortalizada por Gal Costa.

Belchior dialoga, por meio de suas canções, com diversos ícones da música brasileira

Esses são exemplos de polêmicas mais abertas, declaradas pelo próprio compositor no interior do texto. Mas Josely mostra que há muitos outros casos de polêmica velada, passível de identificação apenas em um nível discursivo mais profundo: “Como, por exemplo, quando Belchior se apropria de temáticas já exploradas pelos cantores tropicalistas, dentre elas a da ‘descoberta’ do Brasil’. Na música ‘Quinhentos anos de quê?’, de 1993, Belchior denuncia toda a destruição causada pela chegada dos navegadores à costa brasileira, dialogando de forma polêmica com a canção ‘Três caravelas’, de Alguero e Moreu, e com versão de João de Barro, interpretada por Veloso e Gil de forma ufanista no início da carreira.”

Em meio a essas polêmicas e no polo oposto das canções de Belchior, a pesquisadora também empreendeu uma análise das reações dos envolvidos nestes “diálogos”. Ela observou que, dentre os compositores atingidos, Raul Seixas foi o único a responder a Belchior por meio de uma canção: “Na composição de título sintomático ‘Eu também vou reclamar’, em parceria com Paulo Coelho, encontra-se uma crítica ao que Raul chamava de ‘modismo MPB’: a tendência ao protesto. Nela, depois de se referir, negando (‘Não há galinha em meu quintal’ e ‘E nem sou apenas o cantor’), a duas canções de Belchior, além de criticar a voz do cearense, chamando-a de ‘chata e renitente’, Raul ironicamente sentencia: ‘Eu já cansei de ver o sol se pôr / Agora sou apenas um Latino-Americano / Que não tem cheiro nem sabor / (...) / Mas agora eu também resolvi dar uma queixadinha / Porque eu sou um rapaz Latino-Americano / Que também sabe se lamentar’”, conta a pesquisadora.

Como apontado na tese, essa canção, que em nível textual se refere duplamente a “Apenas um rapaz latino-americano” e “Galos, noites e quintais”, pode ser lida como uma resposta de Raul à canção de Belchior “Alucinação”, que traz uma crítica ao artista baiano e à canção “Trem das sete” no verso que se segue: “Eu não estou interessado em nenhuma teoria / Em nenhuma fantasia, nem no algo mais / Nem em tinta pro meu rosto, oba-oba ou melodia / Para acompanhar bocejos, sonhos matinais / Eu não estou interessado em nenhuma teoria / Nem nessas coisas do Oriente / Romances astrais”.

Quanto a Caetano Veloso, principal alvo das polêmicas, Josely mostra que, de modo geral, “ele silencia qualquer resposta a Belchior nas suas canções. Porém, elas surgem, mesmo que de modo irônico, em algumas declarações públicas de Caetano”. Outros compositores, como Roberto Carlos, Tom Jobim e João Gilberto, também não esboçam reação. “Talvez essa não reação se explique pelo fato de que o diálogo polêmico com esses últimos tenha sido instituído principalmente de modo velado”, afirma a pesquisadora. Já a não reação de Caetano Veloso, segundo entende Josely, estaria muito mais relacionada a uma não resposta consciente do cancionista. Contudo, essa não resposta é ao mesmo tempo uma resposta que desconsidera o diálogo instaurado por Belchior.

Polêmicas estabelecidas por Belchior eram polarizadas entre ele, o polemizador, e Caetano Veloso, principal alvo

A pesquisadora conta que as canções do artista despertaram seu interesse desde muito cedo: “a obra de Belchior me chamou a atenção, pois identificava nela duas características principais, que se somavam e constituíam sua densidade musical: a abordagem de temas não trabalhados em outras obras musicais e a necessidade de se conhecer outras obras – musicais, literárias, filosóficas – para que os sentidos das canções de Belchior fossem desvendados”. E essas características acabaram por dar a tônica de seu doutorado.

Assim, a tese de Josely, pormenorizada, extensa, profunda e feita com extrema dedicação sobre a obra do artista (e dos artistas com quem Belchior dialogou) recebeu recomendação para publicação, junto a destaque pela banca de defesa, que se referiu a ela como “um trabalho de grande alcance dentro das ciências humanas, unindo pesquisas de domínio verbal e não verbal”. Portanto, oferece uma grande contribuição, não somente ao campo em que está circunscrita, ou seja, dos estudos linguísticos e discursivos propriamente, mas à história da música e à cultura brasileira como um todo.

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